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Helvetica Light é uma fonte fácil de ler, com letras altas e estreitas que se adequa bem em quase todos os sites.

21 de dezembro.

 7:00 horas:

Acordei com o Dunas a lamber-me a cara, como sempre. Ah, sim, o Dunas é o meu cão. Levantei-me a custo. O inverno é mau companheiro no que respeita a saídas matinais da cama. Bocejei enquanto abria o estore da marquise do meu quarto, descalço pois, como é habitual, também nessa manhã o cão dera sumiço aos meus chinelos. Algo de muito estranho se passava… havia luminosidade a mais na rua. Estava tudo demasiado amarelo. Voltei atrás e fui buscar os óculos à mesa de cabeceira. Sim porque sou completamente cegueta a partir dos dois metros de distância. A entrada do prédio, a rua, a rotunda, toda a extensão que a minha vista alcançava, estava apinhada de gente vestida de amarelo… foi então que se fez luz. Como pudera ter esquecido semelhante acontecimento tão divulgado pelo Facebook? Era o dia dos “coletes amarelos”, aquela coisa copiada e importada de França!

E agora? Como é que vou sair de casa? Hum, uma coisa de cada vez. Primeiro um duche e fazer a barba. Pensando melhor, que se lixe a barba, fico-me só pelo duche. A seguir, o pequeno almoço e o rol de comprimidos, para o colesterol, a tensão, a glicémia, as unhas dos pés encravadas, os pelos na língua, etc, etc,. Depois logo se vê.

8:00 horas

Duche tomado, vestido e com o estômago satisfeito, tentei abrir a porta de casa para sair. Não dava. Algo impedia que se movesse. Espreitei pela pequena fresta possível. O patamar do meu andar estava pejado de coletes amarelos. Impossível sequer abrir a porta, muito menos furar aquela multidão compacta. Voltei a fechar a porta. Mas precisava mesmo chegar a Lisboa! Hoje era o fim do prazo para a entrega daquele trabalho e não dava para adiar, era uma questão de vida ou de morte. Mas como raio iria conseguir chegar à estação para apanhar o comboio?

Voltei à janela do quarto

Hum… é um primeiro andar e tenho uma corda na cozinha… não parece difícil…

Pensei.

8:20

Desço calmamente pela janela da sala, agarrado à corda, presa a um dos pés da cama. Cá em baixo a mesma multidão compacta. Tento chegar ao chão e não consigo; há coletes amarelos por todo o lado. Acabo por aterrar na cabeça rapada de um jovem barbudo que abre espaço para que eu possa sair de cima da sua cabeça. Finalmente tenho os pés no chão. Mas o jovem que me serviu de pista de aterragem, olha-me com ar desconfiado, ameaçador até.

Bom dia. Desculpa lá, foi a única maneira de sair de casa…

Atirei a medo.

O teu colete, pá?

Disparou o jovem com voz um pouco esganiçada demais para o corpanzil a que pertencia.

Hummm, não tenho… roubaram-mo esta noite…

Iá, irmão, foram os comunas de certeza. Esses tipos estão em toda a parte! No governo, na polícia, na igreja, na assembleia. É essa a razão da nossa luta!

Claro, claro…

Deus, pátria, família, irmão!

Hummm, ok… whatever.

O quê???

Hmmm, é alemão…

Ah, fixe irmão. Gramo alemão. É uma língua fixe. E gosto dos alemães também. Eles é que sabem!

Isso, isso. Agora desculpa mas vou tentar chegar ali ao outro lado…

Pra quê?!

Para me manifestar ali daquele lado…

Boa, irmão, entendo isso. Temos que estar em toda a parte. Há que exterminar os comunas todos. Não pode sobrar um!

Pois é. Dás-me licença então?

Deus, pátria e família, irmão!

Isso... e até já.

Espera! Eu sou o Zé Caricas e tu, irmão?

Humm, não te posso dizer. Por segurança, percebes?

Iá, irmão, entendo! Estás a ser vigiado pelos comunas. Se precisares de ajuda grita! Eu encho-os de porrada!

Boa, boa. Se precisar eu grito. Tchau.

E lá fui furando caminho para conseguir sair da minha rua, mas estava mesmo difícil, a multidão era compacta.

9:30

Mais de uma hora depois, consegui finalmente avistar a estação de comboios. Impossível chegar até ao comboio. Os passeios, a estrada, a rampa, as plataformas, as próprias linhas estavam pejadas de coletes amarelos. E agora? Tinha mesmo que chegar a Lisboa! O trabalho tinha que ser entregue hoje impreterivelmente… tive uma ideia (mais uma): vou tentar alcançar a marginal, de lá sempre posso ir a pé até Lisboa ou então pedir uma boleia. E recomecei a nadar entre aquela maré infindável de gente envergando coletes da mesma cor.

10:30

Alcancei a custo a marginal. Nada feito. Também aqui havia coletes amarelos até onde a vista alcançava… e nada de carros. De vez em quando aquela rapaziada de olhar parado e sobrolho franzido olhava-me com ar desconfiado.

Venho da parte do Zé Caricas!

Passa irmão. O Zé Caricas é um gajo importante na organização!

 Desanimado, decidi passar para a areia da praia onde não havia ninguém. Comecei a caminhar pela praia. Olhei o rio, deserto e pensei com os meus botões:

Se tivesse um barco, chegava a Lisboa a tempo… no rio não há multidões… mas espera aí, em Paço de Arcos costuma haver montes de barcos!

E lá iniciei a caminhada pela praia em direção a Paço de Arcos.

11:00

Apropriei-me de um pequeno barco a remos. Senti um certo remorso pensando que estava a surripiar algo a um pobre pescador. Mas era por uma boa causa! E além disso, tinha intenção de o devolver! Talvez até juntasse uma gorjeta…

Comecei a remar em direção a Belém. Pelo caminho, a multidão na marginal não dava mostras de abrandar. O mar de gente envergando colete amarelo mantinha-se intenso, compacto.

12:30

Avisto finalmente a Torre de Belém. Já faltava pouco. Ainda bem porque remar lá no ginásio não é o mesmo que dar ao braço em pleno rio Tejo! O cansaço começava a apertar.

13:00

Estou junto ao MAAT. Começo a amarrar o barco àqueles tubos inestéticos que parecem canos de esgoto. Mas ao subir deparo-me com o passeio pedonal repleto de coletes amarelos. Sou observado por meia dúzia deles junto à margem que parecem estar a tirar-me as medidas.

Onde é que vais, pá?

Gritou um dos jovens sem cabelo, olhar parado e sobrolho franzido

Venho da parte do Zé Caricas…

Atirei eu a medo.

Sobe irmão! Bem-vindo! Malta, arranjem espaço! Foi enviado pelo Zé Caricas!

Subo as escadas repletas de anos de verdete da beira rio, tentando não me espalhar ao comprido. No cimo sou recebido com abraços, felicitações, “Deus, pátria e família” e outras coisas que não percebo muito bem.

Precisava de chegar ao outro lado… à rua da Junqueira… depressa…?

E para quê, irmão?

Tenho uma mensagem do Zé Caricas…

Para quem?

Não posso dizer… é secreto, entendes?

Iá irmão! Todo o cuidado é pouco. Os comunas estão em toda a parte. Mas vamos acabar de vez com essa raça maldita!

Vaaaaamos! “Deus, pátria e família” sempreeee!

Gritou a amarela multidão em uníssono.

Pessoal, abram caminho para este irmão passar! Foi enviado pelo Zé Caricas!

E começou a abrir-se caminho entre aquela multidão compacta, pelo qual fui avançando. Tinha conseguido chegar a Belém. O trabalho ia ser entregue a tempo apesar de o país ter sido completamente paralizado pelos coletes amarelos.

7:00

Acordei. Doía-me a cabeça e boca sabia-me a papéis de música. Tinha bebido demais na noite anterior, coisa que não deveria fazer pois, além de fazer mal à saúde, provoca-me sempre sonhos que me transportam para situações ou cenários apenas possíveis nas mentes de alucinados (ou gente que abusa do álcool…).

Liguei a televisão. O protesto dos coletes amarelos, tal como esperado, reunira meia dúzia de elementos em volta de umas praças em alguns pontos do país. Nada digno de grande referência noticiosa (como esperado).

 

“Diário do colete”

© Mário Almeida

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